Das férias da minha infância e de boa parte da adolescência guardo a memória de um tempo que parecia não ter fim, o tempo da minha liberdade que já foi infinita. Era então o tempo da biblioteca itinerante da Gulbenkian, da hora da sesta fingida, de aprender os lavoures femininos e sempre que era preciso de ajudar no pequeno negócio da família, mas acima de tudo de descobrir, subir às árvores, andar de bicicleta até cansar, tomar banho num charco qualquer e sonhar. O final do dia perfeito dessas férias tão distantes era à “fresca”, com os pés descalços e em brincadeiras nocturnas que só terminavam quando os pés tinham uma cor suficiente negra e aspecto esquálido. Como alguns apenas podem imaginar… asfalto e pés descalços resultam numa combinação imperfeita, numa estética paradoxal que poderíamos classificar no limiar do surrealismo, não fosse para tantos tão real. Estávamos na década de 80 e só mais tarde, na década de 90, fiquei consciente que pés descalços rimavam melhor com terra e com areia, mas para isso foi preciso aprender que asfalto rima com progresso e pés descalços com pobreza extrema.
As férias incluíam sempre uma visita prolongada aos familiares que, tendo partido há alguns anos “da terra”, viviam perto da nossa costa. E não por pura ironia, nem acaso, e isso agora pouco importa…pois para minha felicidade viviam quase todos! Por isso quando não ficava perto do Estoril, ficava perto de Sintra. Na Parede irritava-me com a obrigatoriedade de entrar no mar com sandálias só porque fazia bem aos ossos! Mas acima de tudo porque entrava por cima de uns pedregulhos que pareciam, aos meus olhos de criança, verdadeiros gigantes de pedra, com as suas saliências pontiagudas. Na Linha, e com o passar dos anos, passámos a ter preferência pela praia do Casino, a do Tamariz, para os locais. Perto de Sintra é das Maçãs que guardo as melhores recordações de quando era temerária, porque foi aí que, ironicamente, aprendi a respeitar o mar.
Entretanto as férias grandes foram passando e chegou a adolescência!
Numas férias grandes, devia ter uns onze anos, aterrámos (eu e a minha irmã) na Encarnação, perto dos Olivais. Passei as minhas férias “encantada” entre o novo Centro Comercial da Portela e as Piscinas dos Olivais. Nesse ano a maior parte dos mergulhos foram menos salgados é certo, mas a possibilidade de observação da diversidade da espécie masculina, por aquelas bandas e na minha puberdade, tornou estas férias mais aliciantes.
Regressemos às férias no Alentejo que entretanto, no final dos anos 80, fora invadido por piscinas municipais, obras da adesão à CEE. Como já éramos suficientemente crescidas para formarmos bandos de raparigas de maiô* que coloriam as águas monótonas desses equipamentos municipais, os mergulhos tinham agora uma nova rota. Assim passámos a ir a banhos mesmo por aqui. As férias passaram a incluir, entre as outras actividades, o périplo das piscinas municipais, Fronteira, Estremoz, Vila Viçosa, Monforte (muito popular na altura) e até Évora, faziam parte do nosso Roteiro. Os nossos pais combinavam turnos para os transportes, uns levavam outros traziam, até que chegou o dia da via para a emancipação (aos quinze e para a minha irmã, que tinha licença, aos dezasseis) e decidiram compraram-nos uma “acelera” para combater os males da interioridade.
Também porque já éramos mulherezinhas, quer dizer adolescentes, os nossos pais passaram a autorizar a nossa deslocação ao fim-de-semana, sempre em bandos heterogéneos, “às praias” de Tróia. O bando não era um grupo de delinquentes, mas obedecia a alguns princípios que podemos observar nesses Ganges, eram uma instância de protecção e hierarquias das mais velhas em relação às mais novas, das quais supostamente cuidavam.
O fim das férias acabava sempre em beleza, com pelo menos cinco dias de acampamento no Avante! (A Festa, o que hoje se chama um Festival). O que parece uma contradição, por que o fim daquilo que é bom pode deixar-nos tristes e ansiosos, mas não era o caso…. A Festa tinha a função de impulsionar a vontade de voltar às aulas e ao trabalho. Ainda hoje tem essa função, a Festa do Avante! é o meu momento de religiosidade, ou se preferirem de peregrinação. Foi lá que aprendi gestos de solidariedade, camaradagem e tolerância, mas acima de tudo a acalentar a esperança num mundo melhor. São as esperanças que nos fazem regressar e principalmente fazem-nos crer e saber viver.
Das férias quero guardar sempre essa possibilidade de liberdade infinita, que neste momento passa por estar só comigo, por pensar só em mim e principalmente só por mim, ainda que às vezes esses pensamentos me arrastem para uma dimensão de loucura, ou melhor de fantasia e ilusão, que é mais saudável para mim do que o mundo real. Sempre consciente, contudo, dos limites dessa fantasia, em que os sonhos, os quais não delimitamos na nossa infância, são isso mesmo. Foi assim que passei a minha primeira quinzena de férias em Agosto, num período que parece temporalmente curto mas que passei a gosto!
As férias perfeitas já foram as férias grandes, hoje são o reencontro. Para quem se sente demasiado estúpido neste período "Cuidado!", porque isso pode ser um mau sinal...
*Nos anos 80, já havia biquínis em Portugal por isso é preciso contextualizar. Digamos que esta era a indumentária perfeita, uma vez que a maioria destas piscinas tinham como atractivo principal para os não-utilizadores masculinos, uma enorme esplanada panorâmica com vista para o colorido das meninas, transformadas assim em verdadeiras Lolitas! O biquíni parecia-nos mais apropriado para a praia em Tróia, ou a Piscina dos Olivais, enfim só mais tarde percebi que era tudo uma questão de representações e controlo social.
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